quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Relato de um Cambone

Coboclo Pena Dourada

Quando, pela primeira vez, estive num terreiro, trazido pelo amor e pela dor (obrigado minha Mãe),  fiquei encantado, literalmente hipnotizado, pela plasticidade e pelo espetáculo cênico que vi. O toque dos atabaques entrou em mim no mesmo ritmo do pulsar do meu coração e eu me deixei levar pela magia e força da gira de Ogum. Pensei já ter me surpreendido com tudo naquela noite, até que me foram apresentados os Exús, daí entender porque se diz que, nesta vida se vive e não se vê tudo.


Aquelas Entidades de olhar penetrante, comandadas por Seu Leme, com suas capas vermelhas e negras, movimentando-se pelo Terreiro, me fizeram lembrar do fascínio, tantas vezes descrito de Jorge Amado pelos Camdomblés baianos. Pareciam todos toureiros, numa invisível tourada do bem contra o mal; da cura contra a dor; do alívio contra a demanda.


Mesmo sem conhecer os seus “porquês”, podia-se entender, sem usar a razão, a grande batalha que se travava ali, um combate cheio de amor e “malícia”, para subjugar forças poderosas e invisíveis.


Durante uma semana não consegui pensar em outra coisa que não fosse voltar. E voltei. Para, semana após semana, ser surpreendido. Ora pela simplicidade e sabedoria dos Pretos Velhos, ora pela força e dignidade dos Caboclos. Ainda me estava reservado o encantamento pela elegância dos Ciganos, pela alegria das Crianças, e me deixei laçar pela fantástica retidão dos Boiadeiros.


De tanto ir e vir quis ficar, vestir o branco no corpo e na alma e fazer parte daquele balé pela paz e pela vida.


No primeiro dia na corrente, aquilo que imaginei ser só alegria, se transforma numa mistura de emoções que poucas vezes havia experimentado na vida. Vontade de ir e de ficar, confiança e dúvida, segurança e medo, mas fiquei mesmo assim, ciente de que estava fazendo a escolha certa e dando uma chance, não para a Umbanda, mas para mim mesmo.


E aí, fui cambonear, e outras lições me aguardavam. Lições de dedicação e humildade. Percebi que não bastava respeitar, era preciso servir. Mas não uma servidão cega, e sim um servir onde se compartilha ensinamentos, donde se suga todo proveito possível; até entender que estava servindo a mim mesmo. Cada charuto que acendi, cada bebida que servi, cada ponto que lavei, acenderam em mim uma chama que arde, mas não queima; me embriagaram de esperança e lavaram de minha alma toda e qualquer dúvida que ainda resistia em mim.


Toda vez que achei que não me surpreenderia com mais nada, fui pego pela minha própria ingenuidade. E chorei todas as lágrimas de emoção a que tive direito.


Quando vi Sr. Cobra Coral repreender com os olhos cheios de amor, lembrei do que é ser pai ou mãe. Quando vi Sr. Folha Verde emocionar-se em um casamento entendi que vale a pena, sempre, chorar de emoção; quando levei um imenso puxão de orelhas do Sr. Pena Dourada e, ao me desculpar ouvi dele “eu só brigo com quem gosto” me certifiquei da profundidade de uma verdadeira relação de amizade e afeto.


No dia em foi jogado meu Búzios, limpei meu coração de todo e qualquer desejo, e fui presenteado com a força e a coragem de guerreiro que são dados por Ogum. E ser filho dele não é fácil. Tenho que dominar a intensidade de meus próprios anseios de guerra, para que eles refresquem e limpem, mas não destruam. E a não despejar sobre Ele, a responsabilidade pelos meus próprios erros. Eu continuo guerreando, assim como ele, mas já consigo transformar anseios  em vitórias. Pelo menos venho tentando com afinco. Às vezes consigo, às vezes não, mas tenho contabilizado apenas os êxitos, para não me entristecer com o que não consegui.


E continuava lavando tábuas, uma a uma. Quando esfregava uma tábua, limpava de mim toda mágoa, quando quebrava uma vela, quebrava minhas resistências, quando afiava uma faca, tornava mais afiado meu desejo de um dia, quem sabe, chegar onde devo ou preciso. Vinha me apaixonando constantemente. Deixei-me seduzir pelo humor  da minha querida Vovó Maria Conga, que me chamava de “metido à sabichão e curioso”, e que confiou a mim o motivo pelo qual vem servindo a quem precisa, contando-me sua história, que tentei reproduzir da maneira mais fiel possível, para conhecimento de todos no blog.  E tive que dominar o ciúme de vê-la camboneada por outra pessoa que não eu (quando fui coroado deixei de ser cambone).


Fui tomado pelo carisma da Cigana Carmen, que ao me presentear com seu espelho, pediu que nele eu visse refletido quem realmente sou. Encantei-me com o comportamento cheio de humor e sabedoria de Maria Quitéria, que me ensinou a ver o amor de um modo surpreendente e inesperado; pela devoção de Vovó Maria Luiza por Nossa Senhora da Conceição, e que com muita paciência me contou que costurava, infinitas vezes, até a raiva passar (como seria bom se aprendêssemos a costurar nossa própria raiva, neste cativeiro em que vivemos!).


Convivi com a força dócil do Sr. Vigia, e com a magia encantadora de Maria Padilha, cujo perfume pude sentir durante dias, dando a certeza de sua presença. Fui tomado pela “pontaria certeira” das cartas de Ramirez,  e pela a alegria, por vezes quase infantil de Vovó Catarina, isso, sem falar na sua vitalidade, deixando-me exausto mas feliz, de tanto andar atrás dela.


Presenciei Pai Miguel aborrecido e desconfortável por beber uma bebida que não era a dele, mas mesmo assim, ser gentil com quem esteve em sua frente. Até que, ao cambonear Caboclo Boiadeiro Menino, eu pude ver, com olhos que nem sabia ter; seu rosto de garoto agreste, magro e moreno, se formar por sobre as feições do seu cavalo. Minha emoção foi igual à dele, choramos os dois, e ouvi dele que a emoção é um dos ingredientes indispensáveis à gira de Boiadeiros, que só com esse sentimento conseguimos tornar concreta e possível a força destes “homens” tão ligados a energia que vem da terra. Disse-me também, que por vezes é mais fácil tanger gado que homens, que estes animais de tamanho e força incríveis, tem a docilidade de se deixar conduzir, que nós não temos, mesmo quando precisamos ou pedimos.E no final me disse que, após te-lo visto, era o sinal de que meu tempo de Cambone estava no fim.


Aprendi a compreender o peso da dor do Caboclo Serra Negra, ao ver sua tribo dizimada e seus filhos mortos por ele mesmo, na tentativa de solver com sangue, sua incapacidade de escolher a hora certa de guerrear (quantas vezes nós mesmos não adiamos nossas batalhas e, quando por fim, nos decidimos, lutamos a luta certa na hora errada). Hoje respeito seu silêncio cheio de dor e arrependimento, e sei que o simples fato dele estar ali já nos ajuda, sem que precise dizer uma palavra sequer.


E o que dizer de meu Pai Ogum? E da minha satisfação e surpresa quando bolei no pé da esteira (pra quem não sabe estava deitando pra Cambone e incorporei na hora H). Aprensivo não sabia o que fazer, foi um Deus nos acuda. Não tinhamos nada preparado, até as guias foram feitas comigo deitado por minha Mãe.   Todos se movimentaram, bichos foram comprados e no final levantei como Oburi. (E aprendi com a Maria Célia a não ter ciúmes dos novos cambones e a quem agradeço por todas as vezes que recorri a ela e fui ajudado). Ogum, agora, me conduz pelos caminhos da sua sabedoria, pelos segredos da magia do seu ponto, e pelo modo quando, ao chegar  nos faz escancarar o coração.


“Quem vê cara, não vê coração, filho!”, me disse Vô Cipriano. E eu ficava ali, bebendo dos ensinamentos que ele, no seu modo sisudo de ser, me dá com tanta boa vontade. Sr. Pena Dourada mereceria um capítulo à parte. E ai de quem não andar na linha! Inclusive eu! Ele exige na mesma proporção que entrega. Fica indignado com a falta de vontade e força das pessoas, mas os acode sempre. Fica bravo, mas protege; xinga, mas ajuda; reclama, mas está sempre lá, às vezes de bom humor, às vezes de mau humor, como todos nós, e recebe a todos com aquele olhar de bravo “lá vem mais um precisando de ajuda”.
Conversava com Sr. Tranca Rua, com a intimidade de velhos amigos, ao mesmo tempo em que me cobre com sua capa, sempre que eu precisava.


E assim me era permitido ir transitando entre essas Entidades maravilhosas, entendendo que estão mais próximas de nós do que podemos supor, como disse a Cigana Sarita, quando choraminguei que estava com saudade dela: “Só temos saudade de quem está longe, filho!”.


Só não entende quem não quiser! E vou continuar lavando tábuas, acendendo charutos e velas, servindo bebidas, mesmo sendo medium de incorporação, pois é o mínimo que posso dar, pelo muito que tenho recebido.


E nunca vou deixar de ensinar a quem quiser aprender.


Nilo Coelho
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